quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Recado

RECADO

Não vá embora
Sem nos dizer quem você é.
Não morra sem deixar uma boa história sobre você.
O mundo é feito de histórias,
E a sua história bem contada
É mais interessante do que a novela das oito.
Certamente é uma história de lutas e labutas,
De encontros e desencontros,
De dor e de alegria.
O que saberão sobre você
Daqui a cem anos,
Se você não contar?
Não parta daqui
Sem antes deixar uma boa história
Para ser contada.

(anônimo)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Era uma vez Itobi...

Era uma vez Itobi...

Foi no findar de 1954 que minha família se mudou para Itobi.

Vivíamos num sitiozinho de 13 alqueires, às margens do Rio Verde, pra lá da Fazenda da Barra. O sítio ficava longe da cidade, as estradas eram ruins, quase intransitáveis. Plantávamos para comer. Meus irmãos iam se casando, e fazendo falta na enxada. Meu pai reclamava do mato na plantação, dos animais passando fome por falta de trato.

Chegou o momento em que trabalhar no sítio não era mais possível. Eu tinha 5 anos e o Zé tinha 11. Com 5  filhos praticamente casados, meu pai tinha de contar apenas com a Zelinda, de 19 anos, e a Vera, com 15 anos para plantar, carpir, colher e cuidar dos animais. Ele não se animava a pegar na enxada, pois sentia que com isto não sustentava a família. Gostava de negociar animais, comprar, vender, barganhar. E sentia necessidade de contato com as pessoas, de prosa, de movimento. Portanto, não via como continuar naquele cafundó, sacrificando as meninas.

Foi quando o vizinho, Américo Torneira, mostrou-se interessado em comprar nossas terras e ampliar sua propriedade. A princípio meu pai hesitou. Acabara de construir uma casa nova, e o Valdemar estava tentando implantar uma granja no sítio. Mas pensou bem, fez as contas. O Valdemar também estava desanimado. A vida ali não tinha futuro.

O valor do sítio não era muito, mas poderia emprestar o dinheiro para pessoas de confiança, e receber uns juros. Os aluguéis em Itobi não eram caros. Pelos seus cálculos, teria renda para viver folgado até o fim de seus dias. Afinal, ele era um homem simples. A família estava acostumada com uma vida espartana, sem luxos. Precisava apenas de um teto, arroz e feijão, parentes e amigos para prosear... Os filhos iam pegando o seu rumo. E para ele, o tempo de viver era um luxo. Então concordou em vender a propriedade.

A família inteira se regozijou. A Zelinda e a Vera, que eram a mão-de-obra pesada, se sentiram livres daquela escravidão, daquele trabalho duro na terra, plantando, carpindo, colhendo, cuidando das poucas cabeças de gado, e ouvindo as reclamações do velho.

Lembro-me vagamente do dia da mudança. A Zelinda, diante da possibilidade de ir para a cidade, acabou de quebrar, propositalmente, alguns móveis mambembes... O velho guarda-roupa manco, a cama desconjuntada de minha mãe, a prateleira cambeta da cozinha foram inutilizados sem que meu pai se desse conta... Assim teria de substituí-los na nova casa.

O caminhão da mudança chegou, e minha mãe não quis ficar para ver carregar os seus objetos. Ela sentia uma dor no coração de deixar o sítio onde vivêramos por 13 anos. Passou na casa de-pau-a-pique onde ainda morava meu irmão Valdemar para falar até logo, que em pouco tempo eles também se mudariam. Em vez de esperar a saída do caminhão, eu, minha mãe, e a Vera tomamos a estradinha de terra em direção a Itobi. Já entardecia, e em pouco se fez noite. Cruzávamos um trecho de mato, quando avistamos ao longe os faróis do caminhão na escuridão, que vinha vindo com nossos tarecos, roncando. O motorista parou, subimos, e creio que dormi. Quando acordei, estava na casa nova.

*

Para o garotinho de 5 anos, que sempre vivera no mato, havia muitas novidades. O que mais me encantou, logo na chegada, foi a luz elétrica. A luzinha fraca, amarelada, mal iluminando o ambiente, me causou espanto. Havia só uma lâmpada na sala, mas minha mãe não havia se esquecido de trazer as lamparinas de querosene... Eu estava exausto, e ignoro como a mudança foi descarregada. Um colchão de palha foi estendido sobre as tábuas da cama, e desmaiei, indiferente ao lugar em que estava.

Era uma casa amarela, de pé direito alto, portas largas, janelas imensas, com cômodos espaçosos, a última casa da Rua 15 de Novembro, encostada na chácara dos Contis. Meu cunhado Pedro depois me contou que ele morara ali no tempo em que frequentava o grupo escolar, com sua madrinha, que tinha construído a casa. Na porta da cozinha havia um forno, e dentro do forno encontramos um cacho de bananas madurinhas que os antigos moradores, o Sebastião Seleiro e Dona Maria haviam deixado para nós, gentilmente. Aliás, o quintal era enorme, com muitas bananeiras, jabuticabeiras e goiabeiras. No fundo do quintal uma comodidade: uma “casinha”, a fossa negra, protegida, onde a gente se acocorava para satisfazer as necessidades, mantendo um equilíbrio precário, contemplando os vermes que se remexiam no meio da merda lá embaixo... Um avanço em relação à vida no sítio, onde procurávamos as moitas, procurando uma certa privacidade, e importunados pelas galinhas. A uma distância razoável, junto da casa, ficava a cisterna, de onde se tirava a água com carretilha, corda e balde.

 Minha irmã Vera conta que logo no primeiro dia subi na mureta da cisterna para tentar apanhar os frutos da goiabeira que lançava seus frutos sobre a boca hiante, sem proteção. Minha mãe gelou ao me ver naquela situação perigosa, mas percebeu que não podia me assustar... que eu poderia perder o equilíbrio e cair no poço... Acidente não incomum naqueles tempos... Aproximou-se “tranquilamente” e me agarrou antes que fosse tarde... E na boa pedagogia da época, foi logo me aplicando umas chineladas para aprender a ter cuidado.

Ah... o quintal era cheio de jabuticabeiras, de goiabeiras, de bananeiras. Moleque esganado, quando vi a fruteira carregada, avancei nas jabuticabas maduras com fé e coragem, engolindo casca e caroço, indiscriminadamente, saboreando a polpa gostosa e suculenta. De quebra, ataquei goiabas ainda verdes do pé ao lado. Não deu outra. Quando chegou a hora de ir ao banheiro, comecei a sentir cólicas, sem conseguir colocar pra fora tudo o que comera. Estava “encalhado”. Minha mãe, ao ver minha agonia, começou a preparar um clister. Entretanto, antes da intervenção, espeli literalmente um “tijolo” de caroços e fibras... Um verdadeiro “parto”, e imenso alívio. Pois é... Acidente do qual as crianças de hoje estão livres, tomando “suquinhos” e saladas de fruta... Mas nunca saberão o gosto de se empanturrar nos galhos de uma jabuticabeira, tentando pegar aquela mais docinha, no último ramo, se equilibrando perigosamente no galho flexível...

Outra memória é de minha mãe estar torrando café... Sim, hoje ninguém sabe o que é torrar café. Colocavam-se os grãos do café na panela de ferro e punha para torrar na trempe do fogão, até deixar os grãos pretinhos, crocantes... para depois então moer o café no munho e chegar ao pó perfumado, pronto para coar. Eu me aproximei da panela escaldante no fogão, e queimei o braço. Comecei a gritar de dor, e meu pai perdeu paciência e me meteu a cinta. Eu devia estar insuportável neste dia para ele chegar a tanto,mas lembro-me de ter ficado profundamente ressentido, sentindo-me injustiçado. Para me consolar, minha mãe me fez doce de leite, e eu fiquei manhoso, choramingando no rabo do fogão.

Apesar de ter cinco anos, eu dormia na cama de meus pais. Lembro-me de uma noite em que meu pai teve câimbras e começou a gemer alto, enquanto minha mãe improvisava o “barbante” para amarrar na perna e cortar a câimbra – uma simpatia. Assustado com os gemidos, fugi para o quarto das minhas irmãs, que era ligado por uma porta interna, e me aconcheguei entre elas. Senti um cheiro forte de mênstruo... o calor das cobertas... e fiquei enojado.

A minha irmã Lisota veio de São Paulo nos visitar, e trouxe a Sônia, e a Zefa, que tinha apenas dois anos. Eu brincava com elas de casinha, com cacos de louça sobre tijolos simulando uma prateleira. Usávamos os panos de bater arroz que trouxéramos do sítio para fazer cercados. Ou rabiscávamos o chão da sala com giz, imaginando os prédios de São Paulo.

O vizinho da frente tinha um garoto, um negrinho, como meu pai o chamava, que me causava um certo medo, talvez por ser um tanto belicoso. Aliás, eu já despontava como um menino covarde, com medo de apanhar dos companheiros. Meu pai tomou minhas dores. Pois é, falei “negrinho” que é exatamente como o chamávamos de maneira depreciativa. Éramos todos racistas, não havia o “politicamente correto”. Naquele Itobi a que cheguei, os pretos eram raça inferior... tratados com paternalismo, mas num lugar sotoposto. E ninguém questionava isto. Minhas irmãs nem pensavam em flertar um negro, pois seria algo indigno. E meu pai não escondia o sentimento de superioridade por ser branco.

Na esquina morava o seu Inocêncio, negro velho, de carapinha branca, silencioso, deslizando como uma sombra nos seus prováveis noventa anos. No primeiro ano da escola, a professora explicou que ele era um sobrevivente da escravidão, e que fora liberto pela princesa Isabel. E ficava muito claro que não era como nós. Objeto de curiosidade, vivendo num mundo a parte.

Na rua de cima morava minha prima Nelsa, com um belo pé de jaca no quintal.

Meu irmão Valdemar não demorou a sair do sítio. Comprou uma casa atrás da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores. Minha cunhada Maura chegou grávida, e nasceu meu sobrinho Camilo em janeiro de 1955.

Quando chegamos a Itobi, aí também morava minha irmã Mariinha, fazia pouco tempo. Meu cunhado Pedro Madureira tinha comprado o açougue do Narcizinho, e tentava levar o negócio adiante. Entretanto, as condições primitivas do matadouro, a crueldade da profissão o fizeram logo procurar outro negócio. Comprou um bar em Casa Branca e mudou-se.

Mas minha irmã em Itobi me traz uma lembrança marcante. Pela primeira vez, em sua casa, que ficava em frente à casa do seu Atílio Morini, da companhia de força e luz, comi abacaxi. Puro encantamento diante do novo sabor agridoce! Mas foi só o começo das minhas conquistas quanto a sabores. Outro momento inesquecível foi experimentar pela primeira vez um sorvete de palito, sabor groselha, no bar do Barquinha (Voltarelli). O picolé, vistoso no seu vermelho vivo, foi meu primeiro contato com o gelo, fascinante, derretendo na boca. E como me esquecer dos bagos visguentos da jaca que experimentei na casa da prima Nelsa? Ou da uvaia azedinha que saboreei na chácara dos Contis?

No começo do ano de 1955, e eu e o meu sobrinho João Batista fomos matriculados no Jardim da Infância – era assim que se chamava – e minha irmã fez uma sacolinha para cada um de nós levarmos o lanche. Mas não me lembro deste Jardim da Infância, creio que frequentei apenas uma semana. Minha irmã mudou-se para Casa Branca, e eu simplesmente abandonei a escola, com a conivência de meus pais que não davam nenhum valor a ela.

Ainda morávamos nesta casa em 14.05.1955 quando minha irmã Teresa se casou. Lembro-me apenas que chorei muito, saí da igreja em prantos. Que fantasias a cerimônia me despertou?

Intercalo uma passagem que me contaram depois. Minha irmã Teresa estava na porta da Igreja com seu futuro marido Marcelo e os pais dele, esperando pelo padre para marcar a data do casamento. Meu pai vinha vindo, olhou, e foi perguntar à Teresa o que ela estava fazendo alí. Ela explicou. Ele, duro, malcriado, ordenou: “Vai já pra casa. Quando o padre chegar, eles vão lá te chamar...” Virou as costas e foi embora. Ela obedeceu.  Seu Zequinha temia que as filhas caíssem na boca do povo... Coisa muito fácil naqueles tempos um tanto hipócritas...

Ah... Tempos de repressão... Teresa se casou e foi passar sua lua de mel em São Paulo, ficando alguns dias na casa de minha irmã Lisota. A vizinha ficou escandalizada ao ver Teresa beijando o marido no portão, achando aquilo uma pouca vergonha, e mal exemplo para as crianças. Um casal em lua de mel mostrando carinho ou afeto um pelo outro, era uma obscenidade...

*

Itobi tinha apenas 5 ruas, e uma dúzia de travessas... A rua principal, que chamávamos “Rua do Meio”, começava na minha casa, junto à chácara dos Conti e ia até um quarteirão depois da Casa Trogiani.

Itobi possuía longas ruas descalças, areientas, sem a sombra de uma árvore. Calçadas carcomidas. Entretanto, as casas tinham amplos quintais, com suas mangueiras, abacateiros, limoeiros, laranjeiras, jabuticabeiras, cajueiros, pés de jambo, uvaia, bananeiras... Além de galinhas, porcos, cabritos, cavalos...

Logo um quarteirão adiante, em frente à Igreja Matriz dedicada a Nossa Senhora das Dores, havia um alto-falante, que chamávamos de PR, sei lá porquê. Toda noitinha, às 7 horas, ouvíamos música, avisos de utilidade pública, anúncios de morte ao som da Ave Maria de Gounot.

Creio que não ficamos um ano nesta casa da rua Quinze de Novembro. Em pouco tempo mudamo-nos para a rua de baixo, a Rua da Estação, a Rua Antônio Martins Daniel, cujo nome só descobri agora, sessenta anos depois...
*




terça-feira, 20 de agosto de 2013

MEU AVÔ, ADOLPHO CÂNDIDO NOGUEIRA

                                                           

                                       MEU AVÔ

                                              I

Nos tempos de meus avós, o casamento se emoldurava numa sociedade tradicional. A educação, a religião, a lei, asseguravam a autoridade do pai sobre a filha, do marido sobre a esposa. A busca de um marido era uma questão obsedante. Casar, mesmo que mal, era uma questão fundamental. Mal as moçoilas deitavam busto, já se lhes incutia a convicção necessária do casamento. O problema era casar. "O amor vinha depois" com o hábito da vida em comum.

Não se preparavam as filhas para viver, mas sim, para serem boas esposas, saberem sofrer, servir, obedecer. O homem era um ente superior, dono do lar, cabeça do casal. A ele se permitiam amantes, filhos naturais. Mas ai daquele que não lavasse a sua honra ultrajada com sangue. Marido traído devia significar mulher morta!

Ficar  para tia, tia solteirona, era uma posição subalterna, melancólica, que deixava entrever um futuro plúmbeo, com lar de empréstimo, pagando com prodigalidade de serviços e dedicações o pão e teto alheios. Naquele tempo, só a vida em família era confortável, toda gente se casava.


O casamento de meus avós antes da proclamação da República tem uma história. Corriam muitos rumores sobre o que seria esta tal República. A República era o anticristo, era a ordem de satanás. Ousava separar a Igreja do Estado. E entre outras disposições odiosas, instituiria o casamento civil, roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Os pais já não teriam autoridade sobre suas filhas e filhos, eles poderiam se casar com quem quisessem no novo regime. 

Naquele tempo, as  filhas viviam enclausuradas até o momento de entregá-las ao marido, que então zelaria pela sua honra. Uma honra frágil que poderia ser perdida num piscar de olhos. E uma vez perdida não podia mais ser recuperada.

Como poderiam os filhos escolher com quem se casar? Se pudessem escolher, certamente escolheriam a satisfação dos instintos, a imoralidade, a safadeza. 

Meu bisavô conhecia mil histórias de garotas trancafiadas em seus quartos, e que tinham sido desonradas... Ele conhecia bem as prostitutas que frequentava regularmente. Meninas de família, que por um cochilo tinham perdido a virgindade, expulsas de casa...

Por isso, antes que viesse a maldita República, meu bisavô tratou de casar suas filhas.


Adolpho Cândido Nogueira, meu avô, era mineiro de Águas Virtuosas de Lambary. Ela era mineira de Alfenas, ou talvez de Guaxupé. Casaram-se em fins de 1889, ele com 24 anos, ela com 19. 

De meu avô não restou nenhuma foto, mas eu o imagino com facilidade. Alto, magro, de tez clara. Olhos castanho-esverdeados, orelhas grandes, de abano, num rosto fino. Bigode, como se usava, cabelos castanhos. Sempre de chapéu, montado num cavalo fogoso, botas e esporas, olhar incandescente, dedo em riste. Enérgico, de voz forte.


Maria José Ribeiro, minha avó, vinha de uma família numerosa, com 16 irmãos. Era orgulhosa de ter frequentado a escola e ter aprendido as primeiras letras. Tinha a sua Bíblia e o seu Missal que lia quando toda a casa já dormia. Contava histórias do mestre bravo, que não hesitava usar a palmatória quando não sabia a lição. Desta avó, restaram fotos de sua velhice. Viúva, sempre de preto, olhar compassivo, rosário na mão. Roupas escuras, humilde. Mas não nos iludamos com este primeiro flash. Atrás do figurino que lhe impunham, havia uma mulher forte, que criou 9 filhos com determinação. Nada de fragilidade, de submissão... Viúva aos 39 anos, cuidou de seus filhos, e sobreviveu até os 100 anos...

Meus avós iniciam sua vida de casados em São José do Rio Pardo. Ignoro o que meu avô fazia no começo de sua vida, mas não consigo imaginá-lo como um colono qualquer. Ô raça! Muito orgulho de si, grande auto-estima. Nascido para mandar. Mas... se se é pobre, sem recursos... como fica este gosto de mandar?

A 22 de agosto de 1890 nasceu-lhes uma menina, a quem chamam Evarista, certamente em homenagem à irmã de meu avô

A 14 de maio de 1892 nascia meu pai, José, às três horas da tarde, em domicílio, como reza a certidão de nascimento. Minhas irmãs garantem que ele comemorava o natalício a 23 de fevereiro, e que nasceu no Sítio Novo, uma fazenda do município de São José do Rio Pardo. O registro diz, na caligrafia arrevesada do escrivão, que nasceu ali na rua da estação, na casa de meu bisavô. Certamente o registro não registra a verdade. Mentia-se para evitar as penalidades de um Estado fajuto. Eram leis que não "colavam". A criança já estava falando, e registrava-se como nascida "ontem", para evitar multas. Foram testemunhas do nascimento, meu tio-avô João Gualberto de Melo (João Mariano) e Joaquim Ignácio de Melo (marido da tia Evarista). Para madrinha de batizado, na igreja, minha avó convidou sua irmã Olímpia e o marido Sebastião.

Mas meu avô é um homem irriquieto, que não se consola com uma vida humilde. Não conseguindo ver perspectivas de um futuro melhor em São José do Rio Pardo, resolve seguir com o irmão Gualberto  e o pai para Vila Nova de Rezende. Colocou os pertences no lombo de animais e rumou para o sul de Minas. O Zeca, com 4 anos incompletos ia num jacá pendurado no cavalo, brigando com a irmã Evarista de 5 anos. Ora queria cavalgar com o pai, ora queria ficar com o avô. Quinze léguas, dois dias de viagem. Era julho, os ipês vestidos de amarelo, a erva de são joão subindo pelas cercas de arame farpado. Muito pó. Terra vermelha. Serras após serras, o verde azulando na distância...

O povoado era conhecido como Santa Rita, que era o orago da capelinha ali erigida. Clima de montanha, aí foi o lugar em que meu pai passou sua primeira infância. Meus avós acompanharam a família. Os filhos foram chegando ritmicamente: Castor (27.11.1894), Maria das Dores (1895), Carmem (16.12.1896), João (22.08.1900). Poucos registros temos da época. Alguém contou que no batizado do meu tio Castor, o cavalo em que minha avó cavalgava "passarinhou", e ela caiu, quebrando o braço. Ela vinha sentada no silhão, que tinha apenas um estribo, no qual a amazona introduzia o pé, ficando o outro suspenso do mesmo lado. Era como se ela se sentasse, meio de lado, suspenso do mesmo lado. O padrinho do menino foi o Vicente Cafundó, de quem ainda falaremos muito.

Meu avô Adolpho e seu irmão Gualberto abriram um armazém de secos e molhados, uma portinha onde vendiam o querozene, o fósforo, enxadas e facões, bacalhau e cachaça. Aí se reuniam os desocupados para beber um trago, trocar desaforos e vantagens. Surgiam  discussões, politicagens. Cuspinhavam no chão de terra, fumando o cigarrinho de palha. Discutiam as notícias recentes, causos. Às vezes as vozes se alteravam. Ali se encontravam capangas dos coronéis locais. Uma tarde a coisa esquentou no boteco, um sururu danado. Meu avô, metido a valente,  se meteu na confusão de rebenque em punho. Os ofendidos foram buscar reforços. Percebendo o perigo, meu avô pôs a família no lombo de cavalos e fugiu na surdina da noite. Sua propriedade foi incendiada, mas ele já ia longe.  Meu pai teria seus sete ou oito anos, e foi levado na cabeça do arreio, pelas estradas poeirentas, enfeitadas por magníficos ipês. Amarelos... Após longa jornada, foram dar com os costados de novo em São José do Rio Pardo, onde foram acolhidos por parentes. E aí se estabeleceram de vez.

Foi trabalhar na fazenda São José, que pertencia a Felice Maria Calvitti, italiano, construtor, artíficie da primeira Matriz de São José do Rio Pardo, do cemitério da cidade, e das igrejas de Casa Branca e Mococa. O patrão era italiano, e como imigrante, não merecia grande consideração por parte de meu avô. Trabalhar para um "carcamano", ele, brasileiro, branco... Sentia-se humilhado. Nesta fazenda nasceu minha tia Carmem, em 16.12.1898. 

Em 1910 um colono, amigo do meu pai, matou Calvitte. Meu avô já tinha falecido (logo eu conto). O colono foi preso em Mococa, e meu pai ia visitá-lo na cadeia, penalizado com suas condições precárias. Doente, com tosse, dormindo no chão frio, com bronquite, aguardando o julgamento... Meu pai se lembrava da opressão do Calvitte, de como explorara meu avô, e relatava as condições do preso para a família... Todos se condoíam, e torciam pelo assassino...

Mas não aceleremos a história... Vamos dar uma olhada na sociedade daqueles tempos...

Naquele tempo, no Brasil, as fortunas provinham apenas do trabalho agrícola. O amanho da terra, o apascentamento do gado eram as únicas  profissões compatíveis com a dignidade humana. E isso porque o trabalho que não o da direção agrícola, até 1889 cabia aos escravos executar. Olhava-se com desprezo para os ofícios "mecânicos", as profissões exercidas com as mãos. Um "homem bom" não tinha sangue judeu, mouro ou negro, não tinha sangue "infecto", não se ocupava de trabalho manual. Era a síndrome do "sinhozinho da Casa Grande", ainda tão comum em nossos dias.

Mas no início do século XX o braço escravo foi substituído pelo imigrante europeu. Daí o pouco apreço social em que era tido o estrangeiro. Era considerado um ser inferior, executando um trabalho que outrora coubera aos negros. Pior, não trabalhavam de graça, como os escravos!

O filho do fazendeiro ia estudar para doutor no Rio, na Europa. O fazendeiro era brindado com o título de major, capitão, coronel, dependendo da sua fortuna. Se tivesse cinquenta mil pés de café, era Capitão. Com cem mil pés, era chamado de Major. Com um cavanhaque, Senhor Major. Mais rico, uma barriga farta, careca, chefe do diretório local, recebia o posto de Coronel.

No início do século XX vamos encontrar meu avô com administrador da fazenda da Serra, do Coronel Soares de Camargo, grande proprietário de terras, homem rico e influente, plantador de café. Não sei se o Coronel Soares era barrigudo, careca... Mas que era poderoso, era... A história da cidade registra seu nascimento em 1856, e morte, em 1946. Era também proprietário das fazendas Santo Antônio, Prata e Santa Rita. Foi quem montou a primeiro hidrelétrica em São José do Rio Pardo. Os dois primeiros carros a motor da cidade foram trazidos por ele. Era um dos caciques locais.

E no final do século XIX, começo do século XX, a grande riqueza de São José do Rio Pardo era o café.

As fileiras verdes desciam encostas, atapetavam planícies, galgavam montanhas, espraiando-se na imensidão do horizonte. As matas iam tombando. Árvores imensas, cernes de madeira de lei, juncavam os campos inaproveitadas. Tudo girava em torno do café, a estrada de ferro chegando com suas levas de imigrantes.

No tempo dos escravos, o símbolo do fazendeiro era o rabo-de-tatu. O fiscal representava o fazendeiro, cuidando do trabalho dos imigrantes, e se sentiam no direito de usar o tal rabo-de-tatu. Os imigrantes recém-chegados não podiam satisfazer as exigências daquele trabalho rude, da formação de lavouras e desbravamento de zonas inóspitas. Recusavam-se a representar o papel de escravos, atraindo a ira dos fiscais. Viam-se, muitas vezes, forçados a cumprir ordens, para evitar serem castigados. Sentiam-se enganados quando se deparavam com uma realidade muito diferente daquela que lhes fora prometida. Quantos deles, impossibilitados de qualquer reação, não sentiram na pele o vergão dos chicotes dos antigos feitores, rebatizados com o título de administradores, quando não do próprio Coronel de falar grosso? 

Meu avô era um destes administradores, que tentava submeter os colonos com pulso forte, na fazenda da Serra. Era estimado pelo Coronel e odiado pelos colonos. A fazenda da Serra cultivava o café, e os imigrantes italianos estavam no lugar dos antigos escravos. Inseguros, em terra estranha, eram submetidos a humilhações e violências. Às vezes um colono se aproximava, inadvertidamente (ou acintosamente!), de chapéu na cabeça, e recebia um tapa no pé do ouvido. Se tinha juízo, apanhava o chapéu e pedia desculpas. O fiscal queria demonstrações de subserviência e respeito. Nada mais era que um substituto do antigo feitor de escravos.

Quando minha avó via o dedo em riste do marido, sua voz tronitroante, os olhos frios de cólera, ficava horrorizada com a macheza do marido, e temia pela sua sorte: "Valhei-me, Nossa Senhora das Dores!" Católica fervorosa, não perdia uma missa, uma procissão, um terço, pedindo a proteção divina. E trabalhava como uma moura, com a filharada pequena ao pé da saia.

Quem ajudava minha avó nos serviços da casa era a Dadá (Teodora), a velha escrava que viera da senzala de meu bisavô materno, o velho Hipólito. Parteira, benzedeira, ama de leite das crianças, pito na boca - e como gostava de uma pinguinha! 

Pertencera à senzala de Antônio Silvério da Silva Musa, proprietário da fazenda Água Fria de Santa Clara. De uma feita, seu patrão se desfizera de boa parte dos escravos, e entre eles, sua mãe. Ela era menina, e não entendia bem o que estava acontecendo. A última lembrança que tinha da mãe foi na fila de escravos saindo da fazenda. Dadá correu para um barranco para se despedir. A mãe, em farrapos, seguia na fila de negros vendidos, com uma cana assada na mão, que chupava, indiferente ao seu destino. Ao ver a filha lacrimejante, hesitou um momento quebrou a cana no joelho e ofereceu-lhe a metade. "Não chora, não!" E a fila seguiu, tocada pelo capataz.  E por fim foi comprada por meu bisavô, e se tornou a ama de meu pai e de seus irmãos.

Meu pai, em pequeno, ajudava nos pequenos serviços. Com onze anos, por aí, ia levar comida para os camaradas na roça. Ao voltar para casa com os caldeirões vazios e sujos, em vez de lavá-los, deixava que os cachorros lambessem os restos. Depois se gabava do feito... Já despontava sua veia sarcástica, o gozo de troçar daqueles que estavam socialmente abaixo.

Desde pequeno, o Zeca era apaixonado pelos cavalos e gostava de montar. Levou vários tombos, quebrando o braço aqui e ali. Socorrido por curiosos,  as talas improvisadas, ficou com o braço direito torto, a quebradura soldada fora de lugar.

A rotina na fazenda era árdua. Às vinte e uma horas o sino tocava o toque de recolher, exigindo silêncio. Todos deviam ir para a cama para iniciar o afã no dia seguinte. Às cinco em ponto o sino tocava de novo, e reunia os colonos para o trabalho. 

Longas ruas de café para serem carpidas. No frio cortante de julho, arrastavam os panos de "colonial" pelos carreadores. Rastelavam sob as saias das plantas para o repasse e recolhimento dos grãos caídos. Manejavam a peneira na dolorosa estética do abano, atividade exaustiva executada nos meses em que não havia erre. Lombavam as sacas de café para as tulhas. E o fiscal a gritar ordens, a cobrar, a resmungar.

                                                   II

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
a vida inteira que podia ter sido e que não foi
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
– Respire.
......................................................................
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
 


(Libertinagem, Manuel Bandeira)

Mas não foi uma emboscada de um italiano humilhado, ou um punhal traiçoeiro que desapeou o velho Adolpho. Foi um bacilosinho que alojou-se discretamente em seu pulmão e começou um trabalho silencioso e sem pressa.

Meu tio Castor contava que num dia de sol quente seu pai cavalgou o dia inteiro pelo cafezal, depois do almoço às nove e meia da manhã. Suado, com sede, chegou a uma casa humilde no meio da roça. Bateu palmas, solicitou uma caneca d'água. Ela veio fresca no vaso de folha, em mãos de uma italiana solícita. Ele bebeu sofregamente, sem apear do cavalo. Obrigado... E esporeando o cavalo, continuou a cavalgada. 

No fim da tarde, chegou em casa com uma terrível dor de cabeça. Tosse, febre.. Um dor na contraquilha, no fundo das tampas do peito... Começava o seu ordálio. Teria sido a água fresca no corpo quente? Teriam colocado alguma coisa na água? Algum malfeito? Que todos viviam temendo mal-olhados, invejas e feitiços... 

Meu avô estava com tuberculose, simplesmente. Junto com a notícia da doença, também ficou sabendo que minha avó estava grávida. Em 08 de abril de 1907 nascia a pequena Elisa, a tia Lisota do Buracão!

Meu avô ia sentindo cada vez pior. Suas forças iam se exaurindo. Aumentava o peso na cabeça. Não tinha vontade de nada neste mundo. Levantar-se às quatro da manhã, como de costume, tornou-se insuportável. Até que caiu de cama de vez com um febrão danado, e vomitando que só vendo. Náuseas terríveis. Da boca trêmula escorria uma baba amarela. Já não tinha forças para trabalhar.

A tuberculose exigia cuidados além dos recursos de uma família pobre. Os ricos podiam ir para a Suíça, buscando por melhores ares. Os remediados iam para Campos do Jordão. Mas o pobre ia se exaurindo, esperando a morte. Sim, a tuberculose era a morte anunciada...

Minha avó rodeada de seus oito filhos (a Evarista acabara de se casar...) se vê perdida. 

Meu pai é o mais velho, e tem apenas 15 anos. Acompanha desnorteado a agonia do seu pai. Aquele homem rude e forte, que via de dedo em riste, feroz, agora estava jogado numa cama, trêmulo. Ouvia-o tossir, uma tosse convulsa, desesperada, que se repetia, se ampliava e explodia angustiada. Rosto vermelho, olhos lacrimejantes pelo esforço. Reclamava do frio que corria pelas suas pernas, pelo ventre e vinha pelo pescoço até as orelhas.

Meu pobre avô já não tem serventia para o patrão. O serviço de fiscal exigia fibra para impor respeito aos colonos. O coronel precisa de gente nova. Mas o Coronel Soares é piedoso e oferece um canto da fazenda á minha avó, às margens do Rio Pardo, com cinquenta pés de café. Mais tarde, também oferecerá trabalho ao meu pai e ao meu tio Castor, que trabalharão para ele longos anos.

Minha avó consulta o marido doente, os parentes, os amigos. Eles têm de sair da casa onde moram. Não há moradia no canto da fazenda oferecido pelo coronel. Reúnem os vizinhos e amigos num mutirão para construir uma tapera de pau-a-pique. Minha avó mesma ajuda a cravar os esteios no chão, a transportar os bambus, a abrir a clareira no meio do mato. O genro Gabriel lhe dá apoio. Enquanto a tapera não fica pronta, empresta-lhe uma casa. Põe os terecos num carro de boi, que o patrão quer a moradia desocupada logo, para o novo feitor. Meu avô vai febril num colchão de palha, em um carro de bois. O barro da tapera seca, e minha avó se muda.

A casa ficava no meio do mato, ao pé de um morro, num lugar completamente ermo. Antevendo a morte, meu avô começa a instruir a mulher. "Manda roçar aquele trecho. Põe fogo naquele capão. É hora de plantar feijão. Faz um rego d'água perto da cerca." Do catre febril, orienta o Zeca, que nos seus quinze anos, vai assumindo o lugar do pai.

As crianças vão contendo a algazarra, rodeiam o pai com olhos indagadores. De qualquer maneira a casa está sempre cheia de gente, de parentes, de amigos. Nasce a minha tia Lisota, nasce a primeira neta de meu avô, a Bizuca, filha da Evarista.

Meu avô vai definhando. As noites eram sempre piores que os dias. Ele gemia, gemia sem cessar. Sufocado, esgazeava os olhos, tremendo, procurando sentar-se no catre. Gritava por minha avó. Pontadas varavam-lhe o peito. A tosse curta e seca vinha em pequenos intervalos.

Uma noite, estava animado, conversando, parecia até melhor, quando se fez branco, parecia que ia falar. Um jato rubro lhe desceu pela boca inundando a camisa de saco, espirrando sangue até o chão. Minha avó entrava com o mingau de fubá, pôs a cuia em cima da cadeira e correu para ele. A febre queimava. Gemeu a noite toda. Chamava pelos filhos. A testa gotejava de suor.

O fim se aproximava. Veio um sono bom, tranquilo, com há muitos meses não tinha. Depois voltou a respirar estertoradamente. Gemia, seus olhos dançavam. Acalmou-se. Enfim soltou-se relaxado. Estava morto. Com quarenta e dois anos. Era 4 de novembro de 1908. Os farricocos levantaram seu esquife pobre como quem levanta uma palha. O gigante reduzira-se a um feixe de ossos.

O féretro humilde saiu, deixando minha avó com oito filhos e nenhum tostão. Perplexidade. 

Mas dona Mariquinha respondeu ao desafio. Com trinta e oito anos, não tinha medo de serviço. Naquele lar, o serviço mais pesado sempre fora o seu. Foi trabalhar por dia com o Castor e o Zeca, que já eram taludinhos, 14 e 16 anos. Em casa, a Dadá cuidava dos menores, socava o arroz, lavava a roupa, preparava a comida. E vamos aos cinquenta pés de café, à pequena roça. E vamos procurar serviço nos vizinhos. O Coronel Soares, honra lhe seja feita, não perturbou a família e permitiu que ficasse em suas terra pelo tempo que precisassem. E quando meu pai e seus irmãos crescem um pouco, lhes oferece trabalho como fiscais em suas terras.

Apesar do permanente terror de contrair a doença, minha avó sempre dava graças a Deus porque ninguém mais na família se contaminou com a tuberculose. A voz do povo dizia que Deus não permite que a doença do marido contamine sua mulher, ou os seus filhos. Entretanto o Zeca vivia sempre auscultando o peito, com medo da doença.

                                      **********

Observação: As informações sobre a sociedade da época, tirei-as de dois saborosos livros de Nelson Palma Travassos: "Quando eu Era Menino" e "No meu Tempo de Mocinho".












sexta-feira, 16 de agosto de 2013

BISAVÓS MATERNOS

                                                         
                                                O LADO MATERNO

Olhando meu lado materno e meu lado paterno, instala-se um contraste curioso. O sangue paterno é solar, macho, agressivo. Homens e mulheres altivos, de voz forte, quando não sarcástica, nariz erguido, língua atrevida, extrovertidos, ativos, conscientes de si, assertivos. 

A tribo de minha mãe é nitidamente lunar. Meigos, de voz macia, olhares profundos e vagos, tímidos, pacientes, resignados. Seres descarnados, consumidos pela melancolia. Suas vidas são um ordálio que suportam na esperança de outra vida.

Olhando de perto, reconheço em meus irmãos traços de um e de outro lado. Uns solares como Valdemar, Zezão, Mariinha, Helena. Outros lunares, como o Válter, a Zelinda, a Vera, a Teresa, a Lisota, e eu. Obviamente, todos têm um raminho do outro.

Meu bisavô João Francisco Ferreira nasceu ali por 1850 na Ilha da Madeira, pleno Atlântico, sol e verde, montanhas e mar. Filho de João Francisco Ferreira e Antônia Luiza. Com cerca de 20 anos emigrou parra o Brasil. Vamos encontrá-lo, não sei por que venturas, em Águas Virtuosas do Lambary, casado com  Francisca Cândida de Melo, brasileira, natural de Lambari, filha de João Alves de Melo e Anacleta. Tiveram poucos filhos, três dos quais guardamos memória: Elísia (minha avó), José e Inácia.

Há vagas histórias de que meu bisavô João, em Lambari, trabalhava em um munho onde se trocava o milho por fubá, e se produzia a farinha de milho, crocante e saborosa. Havia o monjolo, uma roda d'água, uma casa portuguesa... Quando meu outro bisavô, Chico Mariano, partiu para São José do Rio Pardo, certamente o acompanhou. Acredito que as minha bisavó materna era parente da minha bisavó paterna - eram ambas Melo! Talvez fossem irmãs... primas... Foram para São José do Rio Pardo em lombo de burro... Os filhos José e Elísia num jacá, no lombo de um cargueiro (alimária de carga), bruacas e canastras pelos picadões abertos no mato... Viagem longa e cansativa, pousando aqui e ali, nos ermos... Mas não haviam cruzado o mar? Agora cruzavam um mar de morros... E chegaram a São José do Rio Pardo!

Na nova terra, em 30 de dezembro de 1889, nasceu mais uma menina, Inácia. Minha bisavó Francisca morre jovem, creio que ali por 1897. Viviam num sítio, no Bate Saco, à beira do Rio Verde. Falarei alhures a este respeito.

Falemos de seus filhos.

José Ferreira, conhecido como Zeca Emboava, casou-se com Delmira de Mello, minha tia-avó, filha da bisavó Maria Fermina. Morou boa parte da vida em Tambaú, onde tinha uma vendinha. Teve muitos filhos: Inês, João, José, Davi, Daniel. Vivia com sua família a Vina, a cunhada, deficiente mental, que morreu jovem. Dizem que sua família tinha um ar atoleimado, simplório. Eram muito unidos. A tia Inácia vinha com os filhos passear por semanas na casa do irmão.

Daniel veio para São Paulo ganhar a vida, se sentiu citadino e superior. Voltou para o interior, a passeio. Interessou-se pela prima Nelsa. Era atrevido, deixou a família com um pé atrás. Surgiram rumores de que queria roubar a prima - naquele tempo usava-se! Ele realmente se sentia o cara. Minha mãe estava grávida de mim, e ele divertia-se com meu pai, rindo grosseiramente: "Nesta idade, ainda funciona?" Mas sua atitude debochada o afastou da família. Mas casou-se (não com a prima Nelsa que cobiçava...), teve filhos, que ainda vivem em Tambaú, certamente casados e com descendência.

Soube que Davi morreu com problemas mentais no hospital psiquiátrico em Cocais, próximo a Casa Branca.

Em Itobi havia o João Bobo (assim o chamávamos), que alegava ser nosso parente. Talvez fosse sobrinho ou neto do José Ferreira. Alto, corpulento, andava falando sozinho pela rua. De vez em quando pegava o trem e ia para Tambaú. Almoçava na tia Dirce. Guloso, aceitava o convite para almoçar de novo na tia Benvinda. Era filho de uma tal Inacinha - agora que estão todos mortos, não sei qual era o parentesco conosco. Era da família do meu tio-avô Zeca Emboava... Ainda o vejo, com seu terno ensebado, engravatado, sujo... Nos assustando na rua...

A Inácia (tia Inácia, como a chamávamos), a mais nova, casou-se com José Luís Madureira (Zequinha Graciano), com quem teve cinco filhos: Francisca (Sanin), Nelsa, Luís Antônio (Luisico), Pedro (meu cunhado) e Idalina (Lina). São parentes que permaneceram sempre ao lado da família de meu pai, e de quem tenho muitas histórias para contar.

Elísia, minha avó, terá um capítulo especial, aguardem.




A FAMÍLIA DE MINHA AVÓ PATERNA

                   A FAMÍLIA DE MINHA AVÓ


O pai de minha avó Mariquinha, José Hipólito Gonçalves, é mineiro, nascido ali pela década de cinquenta do século dezenove. Minha tia Lisota do Buracão diz que ele viveu em Nova Rezende, onde era homem de certas posses e influência, alfabetizado, o que lhe dava um certo status. Tia Lisota o descreve na velhice, magro, de longas barbas brancas e cristalinos olhos azuis. Paternal, conselheiro, os netos o chamavam de "papai grande". Casou-se com Maria do Carmo Ribeiro, com quem teve muitos filhos: Maria José (minha avó), Olímpia (madrinha de meu pai), Castorino (que morreu assassinado), Olímpio (que constituiu família em Curitiba), João (que morreu em Londrina), Antônio, Sebastião, e muitos outros.

Minha bisavó morreu jovem, e foi enterrada em São José do Rio Pardo, no velho cemitério que mais tarde se tornou o Jardim do Artese, e mais recentemente Praça dos Três Poderes. A vó Mariquinha, subindo em direção ao mercado, apontava o lugar em que sua mãe tinha sido enterrada para as netas.

Viúvo, meu bisavô vinha passar longas temporadas na Fazendinha, onde morava sua filha e netos. Casou-se novamente com América, e continuou procriando largamente. Quando brigava com a mulher, voltava a buscar refúgio na Fazendinha. Um desses filhos do segundo casamento, casou-se com Etelvina, e morou em Guaxupé, perto da Catedral, com a filha Marieta. Vigoroso bisavô Hipólito, cujos filhos brincavam com os netos da mesma idades. Sua prole era conhecida pela valentia. Mineiros de machice comprovada, não levavam desaforo para casa, e inspiravam respeito cauteloso. 

Um de seus filhos, Pedro, matou o sogro, colocou-o nas costas e o levou para dentro da igreja na missa dominical. Ninguém moveu um dedo! Anos mais tarde, na casa de minha avó, ele se desentendeu com meu tio Castor, que lhe deu uma cabrestada nas costas. Minha avó se encolheu de terror. Quando meu tio saía para o cafezal, ficava sobressaltada. Mas ele não se vingou de meu tio, nada aconteceu.

Também ouvi falar de um certo Julinho Hipólito, de Muzambinho, sobrinho de meu avô, que foi assassinado no bar de sua propriedade, ali perto da estação do trem de São José do Rio Pardo. Tinha uma filha chamada Benedita.

E havia um certo Benedito Hipólito, que trabalhou com meu pai, também sobrinho da minha avó.

Tinha ainda o Castorino, que morava em Vargem Grande do Sul, e pode ter morrido assassinado. Pobre, minha avó mandava a tia Lisota e a Bizuca com uma sacola de mantimentos, tentando ajudar...

Poucas histórias, mas sempre com um tônus pesado, de gente braba... Mas falemos das mulheres.

A Olímpia era madrinha de meu pai. Casou-se com Sebastião de Lima. Alta, magra, com seus vestidos longos de fazenda preta, fazia macinhos de palha de milho para vender. Naquele tempo, fumava-se fumo de corda, e a palha para envolver o fumo picado tinha grande procura. Não vou explicar agora como se preparava o cigarro naquele tempo... Picar o fumo, alisar a palha, envolver o fumo picado, passar a língua na palha... Você não vai entender, qualquer dia faço um vídeo... Mas voltemos à minha tia-avó... A minha irmã Mariinha, a Lisota a acompanhavam até o sítio do Domiciano para buscar palha. Descascavam as espigas, parcialmente, senão o Domiciano protestava, enchiam sacos de estopa, e voltavam com os sacos na cabeça, estrada afora... Em casa, a palha era alisada com uma concha de caramujo, medida, cortada. Faziam-se maços de 20 palhas. Acumulavam-se dois, três milheiros de maços, que eram enviados para um atacadista em São Paulo, pelo trem da Mogiana. A vida de madrinha Olímpia girava em torno desta atividade, obsessivamente, e ela reclamava das visitas que interrompiam seu trabalho e sujavam sua casa. Ambiciosa, dizem que comprara sua casa com o produto de seu insignificante lavor. 

O marido, Sebastião, era galinheiro. Profissão importante naquela época. Ia para sítios e fazendas com uma carroça puxada por um cavalo, para vender pão. Trocava por galinhas e ovos que vinha vender na cidade. No fundo do quintal, tinha um galinheiro, lógico! Um lindo quintal, cheio de jabuticabeiras, goiabeiras, laranjeiras, abacateiros, limoeiros, folhagens e flores que ela cuidava com muito amor. 

Madrinha Olímpia não teve filhos, e adotou uma menina, a Maria Bodinha. Má hora em que teve a ideia de adotar a menina. A Maria era indisciplinada, gostava de rapazes, acabou se casando com um empregado da Padaria Alemã, o José, e a vida deles era um inferno. Ele era muito mulherengo, e ela também tinha um tesão enorme. Brigavam. A Mariinha, minha irmã, ia visitá-la no sobradinho perto da estação, e era muito bem recebida, com muitos agrados. Um dia a briga do casal chegou ao extremo, José atirou na Maria, e eles se separaram. Ele quis voltar, e contra a vontade da madrinha Olímpia, ela aceitou. Mudaram-se para Muzambinho e... anti-climax... nunca mais se ouviu falar deles.

Minha tia Lisota do Buracão falava de uma tia Maria, que morava ali perto da Leco, laticínios, ali em São José do Rio Pardo. Era costureira, tinha duas ou três filhas. Fazia vestidos de casamento, e até mesmo o terno para o noivo. Mas quem sobrou para contar?






OS FILHOS DE CHICO MARIANO


                    OS FILHOS DE CHICO MARIANO



Meu bisavô, Chico Mariano, teve vários filhos, todos eles gerados em Lambari, Minas Gerais. Quando migrou para São José do Rio Pardo, a prole o acompanhou.

Lembremo-nos de seus filhos.

João Gualberto Nogueira (João Mariano), era o filho mais velho. Quando nasceu, em Águas Virtuosas do Lambary, em 1861, a vila era distrito de Campanha. Casou-se com Anacleta Alves de Melo, que lá em casa era conhecida como "tia Necreta". Tiveram muitos filhos: José (21.12.1891), Brasilina, Benedita (1898), Julieta Cândida Nogueira, casada com João Alves de Melo Jr., seu primo, filho da "tia Mulata", e que morreu com apenas 23 anos  em Mococa, Pedro (1905), que seduzirá a prima Zenaide, dando origem a um momento difícil na família, Sebastiana, João, Ana, Carmela. Algumas das garota nunca se casaram.

A família de João Mariano rivalizavam com a família de meu avô, Adolpho Cândido. Acusavam uns aos outros de invejosos. Minha avó, viúva muito jovem, ciosa da reputação de suas filhas, acusava as filhas do cunhado João Mariano de serem levianas. Andavam sozinhas à noite sem a guarda de uma pessoa da família. Tinham namoricos. As fofocas circulavam. Meu bisavô, Chico Mariano, não via aquilo com bons olhos. Mineiro durão, aconselhava o filho que pusesse freio nas filhas. Mas o que João Mariano sonhava era que as filhas se casassem com os primos. As fofocas dizem que meu pai, o Zeca, andava com as primas na garupa do cavalo, o que era um verdadeiro escândalo. Enfim, a sociedade repressora da época fazia barulho por pouca coisa. E as primas difamadas acabaram solteiras, e sós! De qualquer maneira, minha mãe também criticava as cunhadas, que tachava de levianas... A tia Carmem era motivo de comentários...

Meu cunhado Pedro relata a grande amizade que havia entre seu pai e João Mariano. Visitavam-se. João Mariano era um Nogueira típico, com discurso provocador. Para cutucar as mulheres que conversavam placidamente, convidava jocosamente: "Zequinha, mais tarde vamos dar uma passada na zona?" Tia Inácia ficava enciumada porque as filhas do João Mariano, "com pernas gordas" vinham sentar-se no colo do marido, o tio Zequinha. Tia Lisota não entendia como este meu tio-avô vivia. Tinha um emprego de lixeiro na prefeitura, conduzindo a carroça com o burro pelas ruas da cidade. Ganhava 120 mil réis por mês... Mas quem o ouvisse conversar... era um doutor!

Maria Fermina Nogueira, é minha tia-avó paterna, que virá a ser minha bisavó materna (esta família tem um lado incestuoso histórico...). Casou-se em primeiras núpcias, segundo minhas deduções, com um Nogueira, talvez seu primo, de quem teve vários filhos. Em um segundo casamento, com Manoel Ignácio de Melo, natural do Carmo, M.G., continuou procriando vários rebentos. Pobre bisavó, que foi criticada talvez por se casar duas vezes, e por alimentar a fantasia de que as filhas de meu tio-avô eram doidivanas. Fofocavam a seu respeito, por seu desejo incontido, por sua sexualidade exuberante para a época. Vagas notícias de infidelidade. Talvez seu filho Alfredo fosse filho bastardo de um turco... Bravo, bisavó! Estou com você, para defendê-la. Vamos a seus filhos.

Meu avô materno, João Batista Nogueira, de quem ainda falaremos muito em outro lugar.

Alfredo Nogueira (chamado, lá em casa de "tio Alfredo"), que despertou uma paixão fulminante em uma sobrinha, Maria, irmã de minha mãe. Reprimida, entrou em melancolia profunda, foi definhando, tuberculosa, e morreu. Encontrei seu registro de batizado na Igreja Matriz de São José do Rio Pardo. Tio Alfredo é lembrado por minhas irmãs Lisota e Mariinha, do tempo em que iam à escola, em São José do Rio Pardo, e ele lhes dava carona na volta para casa. Muitos anos depois, a Lisota foi visitá-lo, no Tatuapé, em São Paulo, onde morava "perto da linha do trem". Morava com a irmã Quininha, que gostava de uma pinga. Casou-se e teve filhos.

Júlio Cândido Nogueira, que se casou com Urbana Aparecida, conhecida por Banica, em 23.06.1906, conforme certidão de casamento. Era meia-irmã de meu tio Albertino de Matos, e nossa vizinha em Itobi. Ela já era viúva quando eu e minha mãe íamos visitá-la, numa casinha infecta de esquina, rescendendo a urina, escura, de janelas eternamente fechadas. Magérrima, enrugada, envolta em trapos, sentada num catre, tirava baforadas de um pito de barro. Os urinóis transbordavam embaixo da cama, empesteando o ar. Sua nora, baixinha, risonha, cabelo pixaim, amulatada, tinha um filho pequeno, que brincava nu na rua, mostrando um pinto enorme, que causava admiração aos passantes... E mais outras crianças de nariz escorrendo, barrigudinhos, chafurdando na lama da rua... Meu cunhado Pedro se recorda de quando eles moravam no rio Verde e topavam na estrada com a família da Banica numa estradinha qualquer. Ao avistá-lo, mesmo sendo um primo, se metiam no mato, encabulados, envergonhados de um simples bom dia, evitando um dedinho de prosa que fosse. Um dia ouvi dizer, lá em casa, que a Banica estava com câncer, palavra impronunciável em minha casa. Teve uma morte dolorosa. Tem descendentes em Itobi e em Casa Branca.

Já falei que esta minha bisavó convolou segundas núpcias com Manoel Ignácio de Melo, natural do Carmo, M.G., filho de Domiciano José de Melo e Ignácia de Souza. Teve com ele alguns filhos:

Horácio de Melo, com vasta descendência em Casa Branca, segundo meu cunhado Pedro Madureira.

Delmira de Melo, que se casará com José Ferreira, o Zeca Emboava, meu tio-avô materno, com descendência em Tambaú.

Vina (?), com problemas de deficiência mental, e que viveu até morrer com a irmã Delmira, em Tambaú.

Perciliana Cândida Nogueira, a "tia Mulata", que convola núpcias com João Alves de Melo. Seu filho, João Alves de Melo Jr., casar-se-á com a prima Julieta, filha de João Mariano, de morte prematura.

Evarista Cândida Nogueira, que pelo casamento se tornou Evarista Cândida de Aguiar, espera aí, mas em algum lugar vi que era viúva de Joaquim Inácio de Mello... Será que se casou duas vezes? Morava ali ao lado do cemitério do Artese, em São José do Rio Pardo. Uma casinha humilde, não muito limpa, dizem os fofoqueiros. Na porta da cozinha ficava um papagaio, numa alcândora imunda, espalhando detritos para todo lado. Tia Evarista, como todas as velhas do seu tempo, vivia metida em roupas pretas, saias longas, recatadas, lenço na cabeça, aparência decrépita... A sexualidade coberta, oculta, disfarçada, recusada, ao contrário da irmã, minha bisavó Maria Fermina. A minha irmã Lisota se lembra de levar encomendas da vó Mariquinha à sua casa. Recebia um naco de pão duro e brincava com a Lolinha, uma sobrinha que ela criava. Ah... esta Lolinha neste ambiente repressor acabou sendo considerada uma garota "danada", interessada em rapazes, "ai, meu Deus!" Engravidou. A Mariinha do tio Castor criou a criança. (Qual o nome dela, ó família, ó São José do Rio Pardo?).

Os filhos de tia Evarista me chegam nublados.

Almerindo, que a tia Lisota do Buracão chamava de Levino, pai da Nenzinha da Padaria Alemã, linda, linda, casada com o Frigo.

O Clóvis, que bebia muito, e estava sempre na cadeia.

O Quincas (Joaquim?) casado com  a Rosina, que tinha um boteco perto do hospital. A Rosina fazia salgados e doces para aqueles que vinham visitar os parentes doentes. Este Quincas tinha um hábito estranho, vivia olhando para o céu, observando os astros através de um canudo, algo meio maluco, predizendo coisas, vendo extra-terrestres e assemelhados. Dizem que tinha uma estante cheia de livros e gostava de ler. Viu? Quem lê muito... só pode ser louco...

José, só tenho este nome assim, de um dos meus tios-avós, filho de Chico Mariano. Mas no meu álbum de família, uma foto desbotada, esmaecida, pertence a ele. Magro, nos seus quarenta anos, de terno branco e colete, chapéu, gravata, botas. E um grande bigode. Ar simples, mas digno. Pouco sei dele. Um administrador de fazendas? Não sei quem me disse que teve vasta prole. 

Francisco, Francisca (tia Chiquinha), só nomes para mim. Nada restou dele, nenhum sinal, nenhuma memória. Meus tios-avós. Pode ser que em cem anos eu também seja somente um nome. Ou nem isso!

Adolpho Cândido Nogueira, meu avô. Para ele eu reservo uma página especial. Aguarde!

Certamente meu bisavô teve outros filhos. Que o tempo consumiu. Nem sombra deixaram. Para nós!







AVOENGOS


BISAVÓS, AVÓS, TIOS-AVÓS...

"E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: 'Meninos, eu vi!'"  G. Dias, "I Juca Pirama"


                           CHICO MARIANO


Nasceu Francisco Antônio da Silva Nogueira, meu bisavô, no distante ano de 1833, em Águas Virtuosas do Lambary (hoje Lambari), Minas Gerais. Naquele tempo, era apenas um pequeno arraial, com três ou quatro dezenas de casas. O nome "Águas Virtuosas" veio da nascente de águas borbulhantes e de sabor especial, cognominada logo de "santa", por suas propriedades curativas, descoberta em 1780. "Lambari" veio dos peixinhos escamosos, "Characidium faciatum", abundantes nos córregos da região. Antônio de Araújo Dantas fundou aí uma extensa fazenda mas só em 1837 foi construída uma capelinha, "uma pequena hermida para se dizer missa ao povo". 

Como meu bisavô foi nascer aí nesse fim de mundo, não sei. Que faziam estes Nogueiras perdidos nas montanhas do sul de Minas? Suspeito que eram descendentes do português Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, que aportou em São Vicente por volta de 1708, procedente da Ilha da Madeira. Estabeleceu-se em São Paulo, inicialmente, mas logo migrou para Minas, seduzido pelas descobertas de ouro... Construiu um casarão em Baependi, e aí viveu, acumulando títulos e fortuna, com numerosa descendência. Até hoje Baependi é conhecida como "berço dos Nogueiras".

Meu bisavô era conhecido como Chico Mariano, por razões que desconheço, e transmitiu o apelido aos descendentes. Nasceu em Lambary, aí cresceu e casou-se (circa 1854). Sua mulher, Jesuína Anacleta de Melo, também era natural do lugar. Tiveram muitos filhos. Já devia ter os seus cinquenta anos, quando mudou-se com toda a prole para São José do Rio Pardo. Por quê teria trocado as águas límpidas do Lambari pelas águas turvas do Rio Pardo? O quê teria levado meu bisavô a colocar seus haveres em canastras e bruacas no lombo de lentos cargueiros, e partir com toda a família para um lugar desconhecido? Talvez fosse parente dos Nogueiras que lutaram pela criação desta vila em 20 de março de 1885. De qualquer maneira, a partir de 1860, a fama das terras de São José do Rio Pardo invadiu Minas Gerais, atraindo muita gente para a região.

A mudança rumo a São José do Rio Pardo deve ter durado dias. A velocidade das alimárias não era mais que seis quilômetros por hora. Os caminhos eram precários, e se retorciam pelo dorso dos espigões. Iam da fazenda do coronel tal ao sítio do major fulano de tal. E assim, torcionando, volvendo, avançando, atravessava-se a frente de uma casa de fazenda, cruzava o curral de outra, um nunca acabar de porteiras. As alimárias marchando sonolentas, carregadas. 

São José do Rio Pardo tinha sido elevado a Capela em 26 de março de 1870, cuja bênção se deu em 1873. Foi a Curato em 30 de outubro de 1875 e a Freguesia em 09 de abril de 1880. 

A vila ainda era incipiente quanto o velho Chico ali chegou. Seu filho, meu avô Adolpho, ia fazer compras em Casa Branca, a 30 quilômetros, a cavalo, devido ao comércio limitado da vila. Voltava com os picuás cheios, comprando as mercadorias que não existiam em São José. 

O progresso chegou com a expansão da cultura cafeeira e a consequente imigração italiana. A luz elétrica ainda não tinha chegado (só chega, precária, em 1900), e o povo se servia de primitivas lamparinas de querozene. 

Os imigrantes davam vida à vila nos fins de semana. Os botequins ferviam. Juntava-se a italianada, barulhenta, a cantar, a tocar, a brigar. E tome murros na mesa, e tome palavrão ecoando na cidadezinha tranquila. O povo do lugar, conservador, hostilizava os italianos, e vice-versa:

"Italiano carcamano,
calcanhar de frigideira,
quem foi que te deu ordem
de casar com brasileira?"

A colônia tinha gente culta e politizada, que os fazia sentir-se superiores. Mas o Brasil, recém saído da escravidão, não via o imigrante como algo muito nobre, já que vinha para substituir o negro.

E os italianos hostilizavam os negros, com quem disputavam dignidade e respeito. Mesmo o italiano pobre se sentia "melhor" que os negros, e queria ser tratado como "superior" em relação a eles.

Meu bisavô, que era de origem modesta, suponho, assim mesmo não veio para São José do Rio Pardo trabalhar nas culturas de café. Isto seria tarefa para os imigrantes italianos. A família herdou dele uma pose, um gosto por mandar, que não se coaduna com o trabalho no eito. Seus filhos e netos terão sempre uma indisfarçável arrogância, um "complexo de sinhozinho da casa-grande". Mas não querendo se misturar com a italianada, se sentindo material para coisa melhor, não se deu muito bem. Ali por 1894, muda-se com toda a família para Nova Rezende, para abrir um comércio. Conflitos com os coronéis locais fizeram com que retornasse a São José do Rio Pardo. Foi residir na Rua da Estação (hoje, Avenida Nove de Julho), numa casa simples de esquina, onde hoje fica a Padaria do Casca.

Não sei de que sobrevivia meu bisavô, já que fugia ao serviço bruto, próprio de escravos e imigrantes. Minha tia Lisota, que residia na Rua do Buracão, se lembra dele como um homenzarrão de tez clara, olhos azuis, sempre presente na vida de filhos e netos. Cavacos honestos ao pé do fogo, pitando um cigarrinho de palha, bebericando café forte e doce, plantado, colhido, secado nas terras dos parentes, torrado, socado no pilão, preparado com carinho no coador de pano... Era um homem sem cultura, assim como seus filhos, mas vaidoso, orgulhoso, falador. Era o chefe do clã, sempre consultado para conselhos e decisões. A família seguia seu comando. Já velho, vergou sob o peso dos anos, e andava de ombros arqueados, ligeiramente corcunda, ensimesmado em suas recordações.

Meu pai possuía um cabo de relho caprichosamente torneado a canivete com a inscrição "Lembrança de Lambary", que o velho Chico lhe dera de presente. Por muitos anos em minha mão, extraviou-se em uma das mudanças, para minha tristeza.

O atestado de óbito me informa que Chico Mariano faleceu em 7 de fevereiro de 1921, com 88 anos, de demência senil, ali na Rua da Estação.